Vampirinas

Outro dia estava na sala enquanto a Patrícia “girava” pelos canais de TV. Por algum motivo bizarro, ela parou num canal que passava a cena da batalha do último filme da série Crepúsculo.

Eu sei que esta discussão já passou e está velha, mas já vinha formulando um pensamento a respeito de algo que foi discutido sobre essa porcaria de série de livros: a questão dos vampiros.

Muitos defensores da série e outros, defensores da liberdade de uma obra ser uma bosta rebateram, uma das mais repetidas críticas sobre a série - a questão dos vampiros serem X-Men quebradiços que cintilam ao sol – com o seguinte argumento: vampiros não existem de verdade e, portanto, não há regras sobre como eles podem ser retratados em obras fictícias.

Eu, temperado nas histórias de Vampiro: A Máscara, e um dos detratores do Crepúsculo-glitter, achei este argumento muito razoável quando o ouvi, e parei de criticar estes detalhes, detendo-me unicamente na qualidade porca da “literatura” meyeriana e de suas posições morais simplistas e toscas.

Mas algo estava errado. Sabe? Quando fica aquela pulguinha incomodando bem atrás do lóbulo. Pois é. Ver a patética cena final do fucking segundo filme - de um livro que mal preencheria um trailer - me fez retomar minhas divagações, e eu consegui catar a maledetta pulga: este argumento, embora razoável, não procede do ponto de vista narrativo. Assim sendo, permita-me tentar descontruí-lo.

A primeira palavra de meu raciocínio: clichê. Eu sei que esta palavra é temida por todo roteirista com pretensões de Godard, mas a verdade é que o clichê é inevitável para a narração de histórias. O problema é quando ele é mau utilizado ou aproveitado em excesso. Mas para retratar algo de forma reconhecível à audiência, o clichê é o caminho.

Vou dar um exemplo: suponhamos que, em um momento, um protagonista precise interagir com uma enfermeira. Não há espaço no filme para contar toda a história dela, de como ela é mãe solteira e trabalha no hospital para ajudar no tratamento do pai que sofre com o Parkinson. Não há tempo para desenvolvê-la aos olhos da plateia. Ela vai ter uma única fala no filme, e depois vai desaparecer, como desaparecem de nossas vidas os manobristas, os motoristas de táxi e os balconistas de loja assim que cumprem seu papel. O que o figurinista faz? Coloca um chapéu com uma cruz vermelha e uma roupa branca nela. Imediatamente o público a identifica como enfermeira, e a mensagem “protagonista interage com enfermeira” é passada adequadamente. Mesmo que a maioria das enfermeiras possam trabalhar com uniformes bem diferentes disso, ou mesmo em funções burocráticas ou administrativas no hospital, usar destes aparatos para identificar aspectos menores da trama a tornam pesada e difícil de acompanhar – há informações demais sobre aspectos narrativos pouco significativos.

Agora vamos um pouco mais longe: imagine que o diretor quer que seu protagonista seja retratado como um homem recém-separado, que ainda não se recuperou do divórcio. Como VOCÊ, que está lendo este texto, imagina esta pessoa e a cena de seu despertar? Provavelmente assim: barba por fazer, camisa amassada vestida no dia anterior, caixa de pizza aberta com meia pizza dentro, roupas espalhadas pelo chão, TV ligada (talvez com algum videogame acoplado), sol batendo direto na cara. Ok, a sua imaginação pode ter alguma variação, mas a mensagem é: “Minha vida está uma bagunça neste momento, e meu ambiente e meu estado refletem esta situação”. Dificilmente a plateia entenderia um homem recém-divorciado indo trabalhar contente, com sua vida toda bem arrumada, limpa e organizada, a não ser que a trama tire um tempo para explicar a situação.

Um terceiro exemplo: imagine agora que a personagem principal está indo conhecer um pirata, um homem que irá contratar para um serviço sujo. O que pensaria a plateia se o tal pirata usasse terno, gravata e um Rolex? Ou então vestisse um casaco de esquimó e botas de couro de foca? Ou então fosse o Schwarzenegger com uma escopeta, óculos escuros e uma moto estradeira?

A verdade é que o conjunto das obras fictícias (e mesmo as supostamente não fictícias, como a Bíblia) já estabeleceram uma espécie de imaginário coletivo. Você pode brincar com isso (no exemplo do pirata, poderia ser uma mulher, ou então um robô futurista) para surpreender a plateia, principalmente se houver tempo para explicar melhor a personagem (o robô poderia ser um pirata de um navio voador steampunk, por exemplo). Mas mesmo isso – a subversão da expectativa – conta com a expectativa pra começo de conversa. E mesmo assim, para que haja uma boa comunicação, é necessário que haja um elemento de identificação. Talvez o pirata use um colete (Han Solo feelings) ou o robô tenha um dos olhos biônicos apagados, numa referência ao famigerado tapa-olho. Mas “pirata” diz respeito a uma coleção de características. Retire um número suficiente delas e já não mais se poderá identificar a personagem como “pirata”. E você, autor, não poderá culpar sua audiência por ficar confusa.

O que nos leva de volta ao Crepúsculo. Eles "sugam sangue" e têm poderes sobrehumanos, que são características de vampiros. Mas pense em todo o resto: o clima novelesco, a paixão adolescente, o brilho drag queen, o melodrama mexicano. Mesmo as características vampirescas são tratadas de forma bem leviana. A demonstração dos poderes antes da batalha, por exemplo, como já bem disse o Felipe Neto, tem mais a ver com super-heróis do que com poderes das trevas. E ninguém nunca suga o sangue de ninguém nessa bagaça. Os vampiros que ocupam a maior parte do livro são “vegetarianos” e não são retratados caçando, e os que se comportam como mortos-vivos e têm poderes mais esperados de vampiros são tratados como antagonistas.

Eu concordo que isso é uma questão de opinião. Talvez pra um, ter caninos salientes e superforça já é suficiente para definir um vampiro. Outros podem achar que eles foram despidos de suficientes caracteres para perder tal identidade. Eu faço parte da segunda leva. E, novamente, me considero legitimado para meter o pau nesta série caça-níqueis de merda. Que, a partir de hoje, chamarei de Crepusculo*

*pronúncia sem o acento

3 parpite azedo:

  1. Concordo contigo,Fex. E, muito antes dos filmes. A sobrinha de minha esposa estava lendo o segundo livro, e, toda eufórica, começou a me contar (tadinha, tinha 15 anos na época). Eu falei que não tinham vampiros nessa narrativa, ela insistiu que o livro era de vampiro. Dei de presente para ela "Os Sete", de André Vianco", e um dvd de "Drácula" de Bram Stoker. Ela voltou a falar comigo quando me convidou para o casamento dela, há um ano. Mas ensinei o que é VAMPIRO.

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    1. Eita! Sua sobrinha levava a coisa a sério, hein! rs

      Bom, adolescentes geralmente levam...

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    2. Acho que era medo de outros "presentes"...

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Nada tão satisfatório quanto saber que seu comentário fex a diferença.